
Neste primeiro podcast já estamos no universo aural da alta fidelidade. O que se destaca como diferenciação sonora, nesta pesquisa, é o caráter profissional ou amador dos registros sonoros.
Em 1976, a pianista e compositora Clarisse Leite (1917-2003), aos 24’20” de uma fita de rolo, em depoimento à Yara Ferraz na cidade de Assis, SP, conta que a musicalidade da banda de rock Os Mutantes (1966 - ) começou pela pesquisa do som.
“Meu filho mais velho, Cláudio César, que é o crânio da família, é dado à eletrônica e tem uma criatividade fora do comum, tem patentes que não acabam mais, e ele inventa coisas inverossímeis em matéria de som. É ele que faz a aparelhagem de som dos Mutantes.”
Nossa história subterrânea, descrevendo técnicas e práticas de estúdio na manipulação cultural dos conteúdos sonoros do samba carioca, com recursos inerentes ao universo eletrônico do áudio, começa com uma narrativa relacionada ao acesso à equipamentos de som em países fora do eixo produtor de tecnologias, colocando em diálogo a descrição do cotidiano de produção do CD duplo: Mangueira – Sambas de terreiro e outros sambas (O cd pode ser ouvido na íntegra aqui - cd 01 - e aqui - cd 02) com Cláudio César Dias Baptista e Frank Justo Aker, representantes de posições de produção e consumo de áudio engajadas com uma ideia de tecnologia nacional e música nacional.
Frank Justo Aker era uma “apanhador de sons”. Membro da Audio Engineering Society (AES), Frank era um “devoto da música brasileira”, e “tinha sérias restrições para gravar um concerto em que não houvesse uma obra de compositor nacional, fato que demonstra um grande engajamento com a música clássica e popular brasileira”. “Frank tinha uma ética ao mesmo tempo dura e solidária: cobrava apenas de quem podia pagar e incentivava os músicos iniciantes por meio de gravações gratuitas ou com valor simbólico”.
Foi graças ao gravador Revox A77 de Frank que pudemos fazer a transcrição das fitas magnéticas da década de 1960 para o projeto Pela Memória do Samba.
A escuta do CD da Mangueira como objeto fonográfico museográfico nos permite comparar usos diferentes de gravadores. Usos amadores, como os de Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho, com a intenção de produzir registros contra o apagamento pelo esquecimento do repertório de Cartola e outros sambistas da Mangueira. Hermínio narra assim sua visão de produtor artístico engajado:
[...] a antropóloga Lélia Coelho Frota me apresentou o projeto Pela Memória do Samba, por ela desenvolvido com uma equipe de jovens pesquisadores [...] Era uma enorme série de entrevistas gravadas [...] entremeadas por sambas maravilhosos [...] a maioria desconhecida do grande público. [...] Não nos norteou qualquer dos critérios de mercado para registrar as obras desse disco [critérios] regidos por códigos duvidosos, [que] refutariam seu conteúdo.
Na ficha técnica do CD da Mangueira consta: Masterização e mixagem em console CCDB 44.
Uma canção para Ars foi gravada na mesa CCDB 44.
CCDB são as iniciais do nome do escritor, músico e técnico de som autodidata Cláudio César Dias Baptista. As iniciais de seu nome deram origem à marca CCDB de equipamentos de áudio, que foi registrada no Instituto Nacional de Patentes Industriais (INPI) sob o número 810.967.685 em 20 de setembro de 1982.
Sua existência como marca de tecnologia sonora feita no Brasil deve ser localizada historicamente no interior de uma rede de atores sociais que utilizaram a restrição de importações dos anos 1970/80 como janela de oportunidade empresarial. Graças ao uso do console profissional CCDB 44, Hermínio Bello de Carvalho produziu fusões entre dois métodos de codificar a matéria sonora para construir suas narrativas poéticas sobre a história do samba na Mangueira.
A primeira foi a técnica de mistura de dois programas de áudio, um do passado, outro do presente, que materializou histórias sonoras como expressão da passagem do tempo entre (1960-1999). É o caso da composição Linda demanda, de Saturnino. Da fita magnética dos anos 60 vem o violão e a voz de Cartola, para se encontrar com a voz de Neuma, o vilão de Paulão Sete Cordas e o tamborim de Jaguaracy, no estúdio em 1999.
O outro método é o da mistura de sons musicais através da arquitetura de um console de mixagem, que, utilizado como uma grade musical eletrônica, permitiu escrever em áudio (tracks) novas linhas para instrumentos musicais, paralelas e sincrônicas ao som da fita magnética, para posterior mistura e controle de sua expressividade e intensidade. É o caso da composição Alegria, de Cartola e Gradim, na voz de Cartola, acompanhado ao violão por Jacob do Bandolim em 1969, à qual se acrescentaram o trombone de Zé da Velha, o bandolim de Pedro Amorim e o coro de vários dos presentes no estúdio em 1999: Hermínio, Paulão, Tantinho, Jurandir, Comprido, Nelson Sargento, Xangô da Mangueira, Zé Maurício, Tia Zélia, Zenith e Soninha.
Também, a técnica de multicanais franqueou a possibilidade do uso da sobreposição de camadas sonoras, produzindo um único músico, Jaguaracy, uma representação sonora da batida única de bateria da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira.
